

PROJETO HÓSPEDE: FLORA REBOLLO E TARSILA DO AMARAL | 2022 | Museu Casa Ema Klabin | Curatorship: Gilberto Mariotti
A série Hóspede trata-se de um convite para que trabalhos de arte contemporânea sejam hospedados pela Fundação Ema Klabin e possam conviver proximamente com uma das obras de seu acervo, acompanhadas por um texto que propõe uma relação entre o trabalho hospedado e a obra anfitriã. Nesta edição, será apresentada a obra de Flora Rebollo “Ovo”, de 2017, exposta em relação com a obra de Tarsila do Amaral, “Rio de Janeiro”, de 1923.
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Sem começo, um ovo em sua casca é lacrado em seus princípios e finalidades. Mas hoje, neste desenho que apresentamos, se revela para todos o que veríamos se fosse possível enxergar um ovo por dentro. É estranho que não tenhamos tido esta dúvida antes, iludidos que estivemos pela noção de que seu interior correspondia ao que podíamos ver quando sua casca era quebrada. Qualquer interior, como se sabe, se transforma completamente em contato com o exterior e vice-versa. Não há começo nem fim, como bem se pode ver: valores coexistem sem hierarquia e a luz que logra atravessar a membrana protetora lida como pode com consistências ora mais densas, ora mais diluídas, de modo a produzir graus de opacidade e transparência que, combinados, formam mais várias paisagens, amparadas em planos diversos, embora pertencentes, todas, a um mesmo continente.
Cai o mito da centralidade da gema, que antes entendíamos como o pressuposto principal de sua organização interna. Ocorria que - agora é fácil explicar – no momento mais preciso da ruptura de suas proteções, o ovo, como um escorpião ou um tatu-bola, se apequenava, se matava por dentro, e resumia em um instante toda a diversidade contida a apenas dois estados didaticamente organizados, centro e periferia, como costumavam fazer os livros didáticos de outrora (é muito difícil dar conta da complexidade das coisas sob a égide permanente da eficiência), de modo que presumíamos erroneamente que o ovo, por dentro, havia sido assim por todo o tempo, quando éramos nós que o fazíamos assim. Um engano, sim, mas de enganos são feitos nosso progresso: agora sabemos que para conhecer um ovo por dentro, é preciso, simplesmente, que evitemos abri-lo.
(Agora troquemos, em todas as suas ocorrências, a palavra ovo por olho, e se verá como todo um mesmo sistema de regras se aplica. Gema, se trocada por pupila ou algo parecido nos apontará, inevitavelmente, para a impossibilidade por parte do olho de enxergar a si mesmo. E ao trocarmos novamente olho por ovo, a prova de que além de não enxergar a si mesmo, o olho não é capaz de compreender nada que se organiza por meio da articulação de mais de um plano. Resta-nos o desenho como campo para exploração.)
No entanto, a luz que se vê, ora como massa clara, ora como superfície que cobre os elementos, parece organizar o campo de visão sem pretender coesão ou harmonia de qualquer tipo. Os amarelos da cegueira de Borges, os azuis fingidos do céu, a temperatura ambiente da paisagem, tudo se ordena ao não se submeter a um comando visionário. Este ato compositivo articula diferentes densidades e trabalha a um tempo a massa de tinta em que a cor é evitada e a síntese de toda cor que circula pela baía, continente de tudo mais que pode advir dali, farolando a movimentação de campos de cor que se chocam, alinham e manobram pelo olho.
Custa-nos abrir mão da crença de que, ao olharmos para uma pintura, mantém-se seu conteúdo intacto, passivamente, à espera de nossas demandas e acertos. Ao contrário, ao demandarmos da atmosfera que em nossa compreensão caiba tudo o que nela antes se movia, disparamos seu constelar secreto contra o domínio da visão.
Gilberto Mariotti