O PRIMEIRO DIA DE DADÁ
Julie Dumont
Entre o micro e o macro, a dobra do corpo e o canto da casa, o centro e a borda, o doméstico e a imensidade do universo, O primeiro dia de Dadá, exposição individual de Flora Rebollo na galeria Quadra, evoca uma dança antropo cósmica na qual forças centrifugas e centrípetas se cruzam e se entrelaçam em um fluxo constante, cada obra podendo ser vista como antecipando ou continuando a outra. As pinturas e os desenhos da artista brotam, de fato, do mesmo lugar: um espaço de jogo e experimentação no qual técnicas, matéria e elementos se alternam e se repetem, evidenciando os contrapontos e jogos de escala que permeiam um corpo de imagens unido por uma narrativa intuitiva, abrangente e horizontal.
Nos desenhos de Flora Rebollo, as forças centrifugas, presentes na sua obra, parecem se condensar para extrair a essência das imagens de forma direta, frequentemente mais figurativa; revelando um leque do seu vocabulário pictórico, como um tipo de gabinete de curiosidades composto de associações de gestos, imagens e objetos talismã pertencendo a artista. Nesta biblioteca particular, coisas corriqueiras do cotidiano coexistem ao lado de elementos cósmicos organizados em uma sequência nas qual as cronologias se confundem, animais parecendo letra ou cadeira dialogam com seres raiados, relógios mimetizam o astro solar e arestas geométricas abraçam as curvas espiraladas do universo.
Já nas pinturas, os elementos pictóricos revestem mais as características do macro e se espalham na tela, como no caso de Caranguejeira, cujo corpo gira fora do quadro como uma cusparada se espraiando por todos os cantos. Composta de faixas de tela costuradas, a obra lembra a fusão-confusão entre os conceitos de criador e de criatura da história do Frankenstein. Da própria pele para o espaço da tela, as marcas de mão carimbadas pela artista
materializam assim a obra.
Nesta dimensão de fronteiras borradas, onde a forma toca o informe e os limites físicos entre o corpo, a obra e o espaço ao redor desaparecem; o conjunto de pinturas, desenhos e esculturas-objetos apresentado por Flora Rebollo lembra que é da ausência de contorno que nasce o mundo primordial, um vórtex que pode engolir tudo, até as galáxias mais distantes, para regurgitá-las em novos arranjo e recomeçar tudo de novo em um ato auto antropofágico
de criação e destruição.
Em seu vai e vem de ideias e imagens, e suas passagens sem hierarquia do macro para o micro, O primeiro dia de Dadá mimetiza o fluxo que transita no espaço do ateliê e na mente da artista. Contrastando com a espacialidade expansiva de exposições anteriores, O primeiro dia de Dadá, cujo título se inspira do livro que a artista traz da sua infância, o Dia a Dia de Dadá, nos aproxima de uma intimidade do cotidiano em uma escala muito humana, uma escala de anotações diárias coletadas ao longo do tempo. Assim, O primeiro dia de Dadá evidencia, em um contexto- espelho quase doméstico, o gesto, a matéria e o prazer do fazer. Flora Rebollo desvela assim os desdobramentos sucessivos da criação de uma linguagem visual: dos primeiros balbucios às associações mais complexas, organizados e desorganizados por uma mão - espiral só.
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DADÁ'S FIRST DAY
Julie Dumont
Between micro and macro, the body´s folds and house corners, the middle and the border, the everyday familiar world and the immensity of the universe, Dadá´s first day, Flora Rebollo´s solo exhibition at Quadra Gallery, evokes an anthropo-cosmic dance in which centrifugal and centripetal forces cross and enmesh in a constant flux, as each artwork can be seen either as an anticipation or a continuation of another. The artist´s paintings and drawings stem indeed from a common space: an experimental, playful space, in which techniques, matter and elements alternate and repeat themselves, highlighting the counterpoints and scale effects that permeate a body of work united by a wide, intuitive and horizontal narrative.
Flora Rebollo´s drawings, the centrifugal forces at work seem to coalesce, to extract the image´s essence in a direct way, frequently more figuratively; revealing a sample of her pictorial vocabulary as a kind of cabinet of curiosities, made of associations of gestures, images and talisman objects belonging to the artist. In this library, ordinary items coexist along with cosmic elements, organized in a sequence in which chronologies mix up. Animals look like letters. Chairs dialogue with cosmic beings. Clocks mimic the sun, and geometric shapes embrace the spiral curves of the universe.
Yet, in the paintings, the pictorial elements show characteristics of the macroscopic; they spread onto the canvas, as in the Carangueijeira´s case, whose body spins outside of the frame like spit expanding towards the corners. Made of stripes of stitched canvas, the artwork remind us the confusion between the creator and the creature from the Frankenstein tale. From her own skin to the surface of the canvas, the stamps that the artist printed with her bare hands materialize the artwork.
In this dimension of blurred frontiers, in which the form lies next to the formlessness, and the physical limits between the body, the artwork and the outside space all disappear, the body of works - paintings, drawings and object-sculptures – presented by Flora Rebollo, remind us that it is from the absence of contours that the primordial world is being born. It is like a vortex that can gobble everything, including the most distant galaxies, only to regurgitate them in new arrangements and begin all over again, in an auto anthropophagic act of creation and destruction.
In its sway of images and the horizontal transition from micro to macro, Dada´s first day mimics the flux that moves in the artist´s mind and studio. Contrasting with the spatiality of previous exhibitions, Dada´s first day, whose title refers to the book from the artist´s childhood, “O dia a dia de Dadá” (Dada´s daily life), brings us closer to the intimacy of the everyday, in a very human scale, a scale of daily notes collected through time. In this way, Dada´s first day highlights, in a kind of mirrored context, the gesture, the matter and the pleasure of creation. Flora Rebollo thus reveals the successive developments of the creation of a visual language: from the first steps to the most elaborate associations, organized and disorganized by a spiraled hand acting alone.