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O traço que vibra não quer fechar a forma

Júlia Coelho | Barcelona, setembro 2021

Desenho força fluídica

As imagens me chegaram por e-mail. Dedos e olhos rolando enquanto recuperava na memória todas aquelas sensações de quando estive diante dos trabalhos de Flora em São Paulo. Lembrava bem do poder metálico do grafite que ocupava grande parte dos seus desenhos, um tipo de força que me fazia sentir as mãos sujas de lápis e os punhos cansados da pressão empregada na superfície do papel. Trabalho de corpo, que ultrapassava a escala das minhas dimensões e excedia os limites do meu campo visual. Quem guiava era ele, o grafite, e eu seguia seus rastros que pareciam apontar direções de forças magnéticas, como se houvessem ali ímãs e limalhas de ferro dançando. Na união de todos os traços, o grafite queria ser pigmento, compunha um caldo generoso que aglutinava tudo aquilo que emergia de sua superfície brilhante. Se contraia e se expandia como um pulmão respirando, comportava-se como um fluido e se deixava deformar pelo que estava ao redor, permitindo às manchas seu direito de existência. Tudo que boiava nele vibrava, estava em movimento. Formas instáveis, corpos moles cujas membranas poderiam romper-se facilmente, intercambiar conteúdos, reagir quimicamente exalando gases tóxicos ou cores fluorescentes.

Também nos trabalhos de Flora o grafite é um bom condutor de energia. Ele faz a mediação entre fluxos de pensamento e suas manifestações visuais, transmitindo em sua passagem pelo papel noções de ritmo e velocidade. Em desenhos como “Corpo” e “Cabeça” tal mediação pode ser observada no traçado do lápis que varia em intensidade e direção, não somente para dar volume à forma do rosto, por exemplo, mas também para articular com outras camadas de cores a transmissão de uma determinada frequência energética, um certo estado de agitação. Em “5 pontas”, a ideia de corrente elétrica se faz um pouco mais evidente pela instabilidade do traço que teria a função de definir a forma de um corpo humano, mas que prefere vibrar em torno dela, dotando-a de algum movimento. Sem qualquer ferramenta, esse efeito poderia ter sido causado por uma mão que tem suas funções motoras debilitadas por uma falha de conexão com o cérebro ou talvez altamente excitadas pelo contato com algo que lhe ultrapassa, como a energia de uma dimensão extrafísica. Para trazer o “5 pontas” ao plano de cá, Flora trabalhou com a micro retífica, uma pequena máquina multifuncional capaz de alcançar alta potência e velocidade de vibração para executar trabalhos de maior precisão, como cortes e polimentos de pequenas peças. Flora substituiu todos os acessórios adequados à micro retífica pelo simples grafite, um robusto lápis 6B que, conduzido pelas vibrações de impulsos elétricos, pôde bailar por toda a extensão do tecido em linhas espirais.

Planetas que circundam o sol

Tudo se agita e se confunde ao redor de “5 pontas”. Se é um campo vibracional, se é o rastro de sua dança, não sabemos. As linhas, fluidas e velozes, contrastam com a densidade oleosa das impressões digitais que se dispersam pelas bordas da tela. Os dedos são quase como as bordas do corpo físico, delimitam campos ao nosso redor, nos protegem e abrem caminhos através do primeiro toque. Suas superfícies são formadas por padrões únicos, capazes de revelar a identidade de quem os possui, e suas pontas são dotadas da maior quantidade de receptores táteis de toda a pele humana. Na tela, suas impressões surgem como formas ovais que alcançam o território da moldura, ultrapassando seus limites. Retalhos de tecidos que Flora costurou, como que estendendo a margem daquele contorno inicial da pintura. 

Nos trabalhos de Flora, a ideia de contorno está bastante associada ao recorte. Surgem com frequência representações de partes do corpo que recortam uma experiência de mundo, como o olho que faz um recorte pela visão, ou a mão que faz um recorte pelo tato. Olhos multicoloridos, explosivos, mãos deformadas e tortas. Flora os transforma em símbolos dentro de seu trabalho, visitas recorrentes que lhe ajudam a especular sobre as limitações dos nossos cinco sentidos e de noções como dentro e fora. A artista tenta burlar a soberania do contorno por meio da montagem – ou colagem, ou costura –, sobrepondo elementos e produzindo interrupções abruptas entre linhas de contato. Espaço, forma e conteúdo se embaralham em suas obras, contaminam-se constantemente, alterando dimensões e ampliando modos de ver. Podem ser cavalos que giram ao redor de uma engrenagem, carrossel, cabeça invadida por um sem-fim de pensamentos, imagens mentais, feixes de luz, flores alucinógenas, equinos galopantes. Pode ser o interior de um pêssego com caroço cortado ao meio, a imagem de uma ultrassonografia, vulcão explodindo, pernas abertas, estômago fazendo digestão.

Não parece um acaso que a artista escolha o “Corpo” e a “Cabeça” para questionar essa ideia de contorno como um traçado inflexível. Aqui podemos lembrar da clássica divisão entre corpo e mente / corpo e alma e suas associações problemáticas entre o irracional e o racional. A cabeça é corpo e o corpo é cabeça: envoltórios que contornam órgãos, processos enzimáticos e psíquicos, mas também entidades simbólicas, estruturas com as quais nos relacionamos com o mundo sensível e através das quais podemos existir. É bonito, portanto, que Flora dê a “Roda-Corpo” a liberdade de contornar o vazio. Como moldura, estava acostumada à função de demarcar o espaço de dentro e o espaço de fora, produzindo também uma espécie de recorte. “Roda-Corpo” leva em sua superfície partes de Flora carimbadas de batom, pernas e braços que correspondem enfim às nossas proporções, permitindo-nos habitar o mesmo espaço da obra. Parece que estamos chegando na terceira dimensão.

O geólogo e o jardineiro

Talvez pela janela já dê pra ver que um dos espaços da casa está sendo recortado pela escultura “Desenho”. Mais um gigante contorno oval, desta vez formado pelo encadeamento dos toquinhos de lápis que Flora já não consegue mais usar. São pequeníssimos e os dedos não alcançam firmeza em seu controle, mas nem por isso são descartados. São reinseridos no corpo de seu trabalho, retornam como objetos e formam um desenho tridimensional que, assim como outros que o rodeiam, sugere um movimento circular. Lápis anciões ou lápis bebês? É comum duvidar do estágio da forma no trabalho de Flora. Os cigarros fumados, pipoca estourada, solado de sapato gasto, cápsulas de remédio vazias, semente de fruta já chupada ou prestes a ser plantada. Tudo indica a passagem do tempo e aponta para a dinâmica de um ciclo, de um ecossistema. Em seu ateliê, a artista cultiva uma porção de referências e de trecos como quem cuida de um jardim silvestre, materiais orgânicos e industriais que em algum momento serão recombinados entre si, brotando como espécies mutantes. Além do mato, a própria terra, sedimentos, formações rochosas, minerais seccionados, matéria ígnea e cristalina manifestam-se em padrões geométricos e fractais, imagens de grutas e camadas de areia que se esfarelam. Novos elementos também podem surgir, como a costura e o bordado, ferramentas que permitem a Flora explorar o aspecto tátil de seu trabalho e perturbar os limites entre o bi e o tridimensional. As linhas antes traçadas por hidrocores elétricos podem ser agora tecidas, atravessam a superfície da tela apontando talvez para um novo lugar: o avesso.

*Os três tópicos que orientaram a escrita deste texto fazem referência aos títulos de desenhos de Josefa Tolrà, médium, curandeira e artista catalã. Entre os anos de 1941 e 1959 Tolrà transcreveu textos, produziu desenhos, bordados e poemas através da comunicação com seres de luz provenientes de outras dimensões que lhe orientavam na canalização da “fuerza fluídica”. Manualmente habilidosa devido ao seu trabalho em uma fábrica de tecidos, mas desprovida de qualquer formação artística,  psicografava imagens preenchidas por círculos e espirais, revelando volumes por meio da sobreposição de camadas de traços de diferentes cores e intensidades que nunca seguiam linhas retas. A profusão de formas amalgamadas refletia não somente o automatismo de sua prática, como também a sua própria condição de médium, alguém capaz de transitar entre o mundo material e o astral.

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