META- IN- PROTO- PLURI- SIN- PRETER- EN- FORME
CCSP 2016
Marta Ramos-Ysquierdo
“é algo como uma aranha ou um escarro”[1]
“… o informe, no entanto, não é só o apagamento da forma, mas uma operação de não fazer a forma, e esse é um proceso de gerar uma “forma má”. E a figura matriz mostra isso em sua condição paradoxal”[2]
Se olharmos a partir do outro lado do espaço do CCSP, o conjunto de desenhos sobre os leves painéis de Flora Rebollo pareceriam uma grande mancha escura com alguns detalhes em cor sem um contorno totalmente definível. Quando nos aproximamos vamos descobrindo-nos rodeados de um sem-fim de outros perfis, alguns reconhecíveis – círculos, setas, células, escadas – e outros que, ainda que familiares, não conseguimos definir.
Na sua primeira mostra individual, Flora apresenta sete trabalhos feitos entre os anos 2015 e 2016. Todos eles tiem em comum o uso de vários papeis que, sendo de diferentes formatos, compõem um tabuleiro sobre o qual trabalhar. Nesses suportes a artista vai adicionando sem uma sequencia específica varias camadas, primeiro de desenho e linhas de diagramas, depois de cores, e finalmente um estrato de grafite que oculta e desvela só algumas partes dos exercícios anteriores. O trabalho é completado com uma série de comentários – desenhos em papéis claros colocados como uma linha embaixo, ao redor ou também independentemente no começo de um possível percurso dentro da mostra. Dessa forma, o diagrama clássico de origem racional com que inicia seu trabalho é coberto com matéria em uma ordem anárquica gestual.
A operação que a artista faz com o uso da tríade linha – cor – matéria é uma ação e contra-ação contínua e realizada de maneira quase obsessiva para mostrar e ocultar, desenhar e apagar. Nesse jogo de contrários, sua atividade é um fazer e desfazer a estrutura para formar outra nova, a qual, ao mesmo tempo, é colocada em questionamento na confrontação com esses desenhos comentários, às vezes anteriores, outras, simultâneos ou também posteriores. Se o grid é negado e manipulado, o tempo linear ou evolutivo também, tanto na construção das diferentes camadas quanto na percepção do tempo mesmo dessa construção que os traços nos permitem ver em cada um dos desenhos. Na análise do uso da forma da retícula na história da arte, Rosalind E. Krauss[3] explica como antigamente o grid permitia a separação entre o sagrado e o profano e , agora, na época moderna, e estando constituída já a obra de arte através desse desenho como autônoma, a oposição se colocaria entre o racional/científico (o novo deus, já que “Deus está morto”) e o irracional/mágico.
Flora se coloca nessa suspensão estrutural e temporal para poder criar uma versão pessoal da “heterologia”, [4]a ciência que estuda o que é completamente outro, e que ela explica na leitura do texto do surrealista como “as mil possibilidades da forma sem que tenha que ser fixado por um nome”. Aquilo que na impossibilidade de ser definido é descrito, como faz Bataille “algo como” (uma aranha ou um escarro), e que a artista condensa no uso só de prefixos para dar título à exposição. No autor francês existe a necessidade de manter a “dimensão do corpo estranho ao sujeito sem converte-lo em ideia, em forma acabada, ou seja, sem dispô-lo à ‘fabricação’ e ao ‘consumo racional’”[5], magnitude que se identificaria, por um lado, no sagrado, mas já não válido porque tinha sido traído pela religião, e, por outro, na formação abjeta, não só na sua negação da forma, mas também na experiência do sujeito na procura desse execrável, repugnante e obsceno, o que não é bel, atrás de um conhecimento não classificado.
Existe na produção de Flora um desejo, um impulso do informe, desse estranho indefinível que faz ir à procura de perguntas e não de respostas. E assim que o fluxo de seus pensamentos vão e voltam, e voltam a voltar. E isso poderia ser o que esses enormes pequenos desenhos, pensados como fluxogramas, tentam construir como próprio discurso. Uma ferramenta para organizar graficamente a energia que circula no seu cérebro, e que como uma tomografia nos traz imagens, que são ilustrações do inominado, o que não tem lugar, o que não pode ser classificado.
No ateliê de Flora pode-se encontrar os rastros de todas essas referencias: Uma imagem do universo tomada pelo telescópio Hubble, antigas fotos dos ectoplasmas de médiuns em transe, o desenho de uma mão, o texto de Bataille. Mas também suas aquarelas circulares em uma só cor realizadas, mais uma vez, compulsivamente. Elas lembram uma série de pinturas da Índia sempre realizadas em papel e em pequeno formato e que são imagens autônomas para a medição através do Tantra (“tan” é estirar” e “tra” significa “além dos limites”). Delas, as mais antigas versões são do século XVII, e não existe uma só interpretação, já que seus significados não foram fixados estritamente. Em Paris, em 1970, o escritor mexicano Octavoi Paz organizou a primeira mostra de arte tântrica no Ocidente, na qual colocava essas versões em relação com obras contemporâneas. No prólogo da exposição Paz descreve a arte como um ato da mente que é o ponto inicial para ir além do objeto. Um dos artistas participante foi o também escrito Henri Micheaux, aquele que tratava da “estranheza das coisas naturais e a naturalidade das coisas estranhas”[6], e também participara nos textos com o poema Yantra[7]. Nele o conjunto das pinturas tântricas é largo e vertical, simultaneamente em cima e em baixo, e um olho sem pálpebra e sem rosto contempla inalteravelmente e sem fadiga voltando a chamar à ordem, ao retorno e à supressão: META- IN- PROTO- PLURI- SIN- PRETER- EN- FORME
[1] Georges Bataille, L’informe, Documents n. 7, Paris, 1929.
[2] Yve-Alain Bois e Rosalind E. Krauss, Formless: A user’s guide, The Zone Book, New York, 1997
[3] Rosalind E. Krauss, Grid”, October vol. 9, The MIT Press, Cambridge Massachusetts, 1979.
[4] Georges Bataille, Valeur d’usage de D.A.F. de Sade, Paris, 1929-1930.
[5] Marcelo Jacques de Moraes, Georges Bataille e as formações do abjeto, Outra Travessia n. 5, UFSC, Florianópolis, 2005.
[6] André Gide, Découvrons Henri Micheaux, Editions Gallimard, Paris, 1941
[7] Henri Micheaux, Yantra, Art Tantrique, Point Cardinal Galerie, Paris, 1970