BURUBU
PRELÚDIO
A obra de Flora Rebollo notadamente desafia definições discursivas. Apesar, ou por causa disso, emprestamos aqui categorias do campo das palavras – onomatopeia, palavra-valise e palíndromo – para pensar nas dinâmicas com que se forma e se percebe sua produção visual.
Estes empréstimos são tentativas de vasculhar o mundo verbal para encontrar noções estranhas ao vocabulário comumente utilizado na discussão do desenho e da imagem e que, por isso, podem ajudar a pensar em uma prática de critérios e resultados pouco usuais.
ONOMATOPEIA
"Burubu", título escolhido para esta exposição, poderia ser uma onomatopeia, ou parte dela. BURUBURUBURU, como o trepidar de um trem sobre trilhos ou o som molhado de lábios comprimidos vibrando com um sopro na brincadeira de um bebê. Uma vez que a criação de uma onomatopeia se baseia na transposição aproximada de um ruído em fonemas de determinada língua, seria na verdade muito difícil confirmar com certeza a que cada uma delas se refere, não fosse o auxílio do contexto (como o acompanhamento de ilustrações em histórias em quadrinho) ou a consagração de certas fórmulas (como o auau do cachorro em português, que pode ser bow-wow nos livros infantis em inglês).
Uma onomatopeia é, portanto, uma palavra-acontecimento, presença sonora transformada em escrita por aproximação, contexto e hábito, desprovida de algo que possa efetivamente ser chamado de etimologia. Assim são também muitos dos elementos que o olho circunscreve nos desenhos recentes de Flora Rebolo – eles estão presentes, são identificáveis como elementos graficamente definidos, mas resistem a interpretações e reconhecimentos diretos. Não cabem propriamente em nenhuma categoria, e o que lhes dá peso é a relação com o contexto compositivo da folha e alguma lembrança ou associação que passe pelas nossas cabeças.
Uma bola que é um ovo, que é uma mitocôndria, que é uma mancha, que é um tufo, que é um circuito. Alguma coisa muito grande e que é muito pequena também. Um problema de percepção e repertório. Tum, soc, pof visual. Cor, traço e matéria presentes em formas sem etimologia. Qualquer coisa, ou isso mesmo em que você está pensando. Não, não exatamente isso que você disse, o que você está pensando. Desenho-acontecimento.
PALAVRA-VALISE
Pode parecer estranho em um primeiro momento, mas, se pararmos para pensar, faz sentido: existe uma linha que liga o poeta e tradutor Augusto de Campos aos experimentos linguísticos de James Joyce, passando pela inventividade desmedida de Lewis Carroll, autor de Alice no país das maravilhas. Nessa linha está amarrada a ideia de palavra-valise, que Carroll apresentou na boca do personagem Humpty-Dumpty como uma palavra que embrulha em si dois sentidos ou mais.
Briluz, lesmolisas e gramilvos estão entre os exemplos, burubu podia ter sido outro. Apesar do princípio base da fusão de palavras (brilho mais luz, briluz), o potencial maior desses artefatos linguísticos está naquilo que fica vago na sobreposição das palavras e que percebemos sem saber bem como e porquê. Pois não se trata apenas da soma de partes, mas da criação de um novo corpo cuja sonoridade inteira trabalha e pode provocar alusões.
Em suma, criar palavras-valise depende do ofício poético de fazer dois e dois ser ao mesmo tempo mais e menos do que quatro. Atitude que Flora Rebollo pratica em seus desenhos-valise, em que cunha equivalentes gráficos ao que poderíamos chamar de arcolíris, manchóis, pedrulhos ou espirondondas. A própria ambiência formada entre os vários desenhos dispostos no espaço (pois, é bom salientar, a montagem é um problema caro à artista, tanto nas paredes do ateliê em que se empilham os desenhos quanto no espaço expositivo em que eles se articulam) refaz essas montagens como um grande embrulho de conformações em promiscuidade visual. Cores devagueiam em entropicoplasmas movivazes.
PALÍNDROMO
Burubu não é, mas está bem perto de ser um palíndromo, palavra que se lê idêntica de frente para trás e de trás para frente. Quando dizemos que a obra de Flora Rebollo desafia definições discursivas, é porque ela se dá em fluxos processuais que alternadamente formam e desformam, sem um argumento estruturado em começo, meio e fim. Assim, a finalidade pode estar em qualquer ponto do processo; e muitas vezes a obra se define como pronta em um instante anterior ou posterior àquele em que seu motivo ficaria mais evidente.
Em seu panorama, trata-se de uma produção palindrômica, cuja percepção passa por ir e vir do fato visual acabado para os gestos gráficos que o criaram, em um fluxo constante. Por isso chegamos perto e nos afastamos, elegemos detalhes e por meio deles achamos rotas até o todo.
Omississimo é a maior palavra dicionarizada em língua portuguesa que se lê como palíndromo. Refere-se a algo extremamente omisso, o que não deixa de ser um paradoxo ou, pelo menos, uma pegadinha lógica. Como no queijo suíço: quanto mais queijo, mais buraco, quanto mais buraco, menos queijo, quanto mais coisa, mais omissa, quanto mais omissa, menos coisa.
Isso pode servir para pensar em por que quanto mais desenhos da artista vemos juntos, menos podemos categorizá-los com precisão. O que parece certeiro em uma imagem logo é colocado em questão pela próxima. O trabalho cava perguntas, não respostas. Há consequência, um trabalho reage a outro, mas para puxar-lhe o tapete.
EPÍLOGO
Por fim, se pudermos emprestar as fórmulas criadas por Waly Salomão, o resultado da aventura visual de Flora Rebollo poderá ser descoberto pelo esforço combinado do OLHO-FÓSSIL e do OLHO-MÍSSIL, a mirada que cavuca a superfície aparente dos desenhos à procura de pistas de sua fatura pregressa, ao lado daquela que desrespeita limites e classificações e atravessa as bordas dos papéis, as linhas da modulação ortogonal e a distância entre as paredes em um voo rasante, vivamente desrespeitoso e ousado.
Artistas como Flora Rebollo constantemente nos lembram que a linguagem falha, nos escapa e se recusa a fazer o que dela esperamos. Eles também nos lembram que é por causa disso, e não apesar, que é possível e necessário insistir sobre a linguagem: desacomodá-la, pedir que faça mais do que se sabia plausível, encarar a inevitável falha ao final como uma derrapagem que deve ser provocada, saboreada, nunca ignorada.
Paulo Miyada
Setembro de 2017
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BURUBU
PRELUDE
Flora Rebollo’s work noticeably defies discursive definitions. In spite of that, or because of that, here we borrow categories from the word’s field – onomatopoeia, portmanteau word and palindrome – to think about the dynamics of her visual production, the way it is formed and perceived.
These loans are attempts to rummage the verbal field in search of notions foreign to the vocabulary commonly used in the discussion of drawing and image and, therefore, they can help us to think about a practice of unusual criteria and results.
ONOMATOPOEIA
“Burubu”, the title chosen for this exhibition, could be an onomatopoeia, or part of it. BURUBURUBURU, like the rumble of a train on its tracks or the liquid sound of compressed lips vibrating with a breath in babies’ babbling. Since the creation of an onomatopoeia is based on the approximate transposition of a noise into phonemes of a certain language, it would in fact be very difficult to confirm with certainty what each one refers to, were it not for the help of the context (such as accompanying illustrations in comic books) or the consecration of certain formulas (such as the dog’s auau in Portuguese, which can be bow-wow in children’s books in English).
An onomatopoeia is, therefore, a word-event, a sonorous presence transformed into writing by approximation, context and habit, devoid of something one could effectively call etymology. So are many of the elements that the eye circumscribes in Flora Rebollo’s recent drawings – they are present, they are identifiable as graphically defined elements, but they resist direct interpretations and recognitions. They do not really fit into any category, and what gives them weight is the relationship with the compositional context of the paper sheet and some memory or association that crosses our heads.
A ball that is an egg, that is a mitochondria, that is a stain, that is a tuft, that is a circuit. Something very big and very small too. A problem of perception and repertoire. Visual tum, soc, pof. Color, line and matter present in forms without etymology. Anything, or whatever you’re thinking about. No, not exactly what you said, but what you are thinking. Drawing-event.
PORTMANTEAU WORD
It may seem strange at first, but, if we stop to think, it makes sense: there is a line that connects the Brazilian poet and translator Augusto de Campos to the linguistic experiments of James Joyce, going through the excessive inventiveness of Lewis Carroll, author of Alice’s books. To this line is tied the idea of portmanteau words, which Carroll presented in the mouth of the character Humpty-Dumpty as a word that wraps in itself two meanings or more.
Brillig, slithy and borogoves are among the examples, burubu could have been another. Despite the basic principle of fusing words (brilliance, brighter, brighter), the greatest potential of these linguistic artifacts lies in what remains vague in the overlapping of words and which we perceive without knowing how and why. For it is not just the sum of parts, but the creation of a new body whose entire sound works and can provoke allusions.
In short, creating portmanteau words depends on the poetic craft of making two and two at the same time more and less than four. The attitude that Flora Rebollo practices in her portmanteau drawings, in which she mints graphic equivalents to what we could call arcolíris (lyricrainbows), manchóis (stainsuns), pedrulhos (noisepebbles) or espirondondas (spiralwawaves). The very ambience formed between the various drawings arranged in the space (because, it is worth noting, the assembly is a problem dear to the artist, both on the walls of the studio where the drawings are stacked and in the exhibition space in which they are articulated) remakes these assemblies as a great wrapping of conformations in visual promiscuity. Colors wander in livemoving entropectoplasms.
PALINDROME
Burubu is not, but it is very close to being a palindrome, a word that is read from front to back and back to front. When we say that Flora Rebollo’s work defies discursive definitions, it is because it takes place in flows of processes that alternately form and deform, without a structured argument with beginning, middle and end. Thus, the purpose can be at any point in the process; and the work is often defined as ready at an instant before or after the time when its motive would be most evident.
In its panorama, it is a palindromic production, whose perception goes through the finished visual fact to the graphic gestures that created it, in a constant flow. That’s why we come close and move away, we chose details and through them we found routes to the whole.
Omississimo is the largest Portuguese dictionary word that reads like palindrome. It refers to someone extremely omissive, which is still a paradox or, at least, a logical conundrum. As in Swiss cheese: the more cheese you have, the more holes you have, the more holes, the less cheese; the more omissive, the less stuff.
This may serve to think about why the more drawings of the artist we see together, the less we can categorize them accurately. What looks right in one image is soon called into question by the next. The work digs questions, not answers. There is a consequence, one work reacts to another, but to pull the rug out of it.
EPILOGUE
Finally, if we can borrow the formulas created by Brazilian poet Waly Salomão, the result of Flora Rebollo’s visual adventure can be discovered by the combined effort of FOSSIL-EYE and MISSILE-EYE, the look that digs into the apparent surface of drawings looking for clues of his previous invoice, next to the one that disrespects limits and classifications and crosses the edges of the papers, the lines of orthogonal modulation and the distance between the walls in a low, vividly disrespectful and daring flight.
Artists like Flora Rebollo constantly remind us that language fails, escapes us and refuses to do what we expect from it. They also remind us that it is because of this, and not despite, that it is possible and necessary to insist on language: to uncomfort it, to ask it to do more than was plausible, to face the inevitable failure at the end as a slippage that must be provoked, savored, never ignored.
Paulo Miyada