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ESPANTÁLIA

Durante 10 dias do mês de maio de 2023, Flora Rebollo e Gokula Stoffel viveram uma experiência de imersão artística na área rural da cidade de Bocaina de Minas (MG). Durante esse período, as duas aprofundaram um diálogo que resultou na exposição ESPANTÁLIA — a partir de um embrião que existe desde 2019, quando as artistas se tornaram vizinhas de ateliê. Na reta final do preparo da exibição para a Lanterna Mágica, Flora e Gokula receberam Erika Verzutti para uma conversa sobre o resultado dessa jornada.

 

 

OBSERVAÇÃO E ABSORÇÃO

 

Erika Verzutti: Como foi a experiência de trabalhar na Bocaina, cercada pela natureza?

 

Flora Rebollo: A gente chegou lá e só conseguia olhar pras paisagens, pras plantas, ver pôr-do-sol... É um lugar lindo, e foi muito difícil não sermos tomadas por isso. Grande parte dos trabalhos que fiz lá foram de observação. Mas quando eu voltei pra São Paulo, mexi em quase tudo. Quando os trabalhos feitos lá chegaram no ateliê, foi um alívio. Porque parecia que eles tinham encontrado a turma deles.

 

Gokula Stoffel: Já eu fiquei em crise com isso de representar algo que estava ali na minha frente. Porque eu não trabalho desse jeito, a partir da realidade. Ao mesmo tempo, dava muita vontade de fazer, porque tudo ali era lindo. Acho que a paisagem que eu fiz e de que mais gostei, foi quando dei as costas para a vista. Resolvi fazer a paisagem sem olhar pra paisagem.

 

F.R.: A gente ficou lá 10 dias, observando as coisas. Daí, a gente voltou pra cidade e fez mais trabalhos a partir de memórias do que a gente absorveu nesse tempo observando o entorno.

 

G.S.: Nos trabalhos que a gente fez na Bocaina, tem muita paisagem “exterior”. Já naqueles que a gente produziu em São Paulo, a paisagem é mais “interior”.

 

E.V.: Eu também não sei se conseguiria sustentar por muito tempo uma atividade artística em contato direto com a natureza. Acho que trabalharia um pouco, um pouco me esconderia. Entendo o que vocês dizem.

 

F.R.: E lá é um lugar de extremos. Tinha uma coisa corporal, de entrar na cachoeira gelada, depois ir pro sol se esquentar, de sair na claridade, depois entrar no escuro da casa...

 

G.S.: Cinco e meia da tarde, já não tinha luz pra gente trabalhar fora da casa, por exemplo. Era hora de entrar, fazer a comida, conversar um pouco sobre os trabalhos... Então, a gente rapidinho pegou o ritmo do dia.

 

F.R.: Teve um dia que eu acordei às seis da manhã, abri a janela e fiquei vendo o sol nascer da cama. Passei muito tempo olhando o sol através da névoa. Até que eu dormi de novo. E sonhei que tinha ficado cega com aquela luz. E eu saía pela casa dizendo, “Gok, não estou vendo nada!”

 

G.S.: Nesse dia, eu também acordei cedo, e estava na cozinha, sentada, vendo o raiar pela janela. Eu fechei os olhos e comecei a ver negativo: o verde era vermelho, o azul era laranja, as cores piscavam, e o céu tinha uma mancha escura no meio... A Flora me contou do sonho em que estava cega, e eu, ali, vendo um sol preto.

 

 

A FLOR E A MÃO

 

E.V.: Vocês chegaram a uma mistura de trabalho que deu muito certo e que nem sempre é fácil de conseguir. Pra mim, a cada visita foi ficando cada vez mais difícil distinguir o que é de cada uma.

 

G.S.: Tem trabalhos que são bem claros que são de uma ou de outra. Mas tem, por exemplo, uma pinturinha, de por do sol meio rabiscada, que foi a Flora que fez, mas eu olho e penso que eu poderia ter feito ou até que já fiz algo assim. É muito familiar.

 

F.R.: Nossos trabalhos têm semelhanças, mas acabam em lugares diferentes. As duas começam sem um projeto e trabalham até encontrar algo. No caso da Gokula, me parece que quando ela acha uma figura, isso vira o norte dela. No meu caso, o norte é seguir transformando e abstraindo.

 

G.S.: Sim, nesse momento do trabalho, eu passo a dar mais contorno para que as pessoas também possam enxergar o que estou vendo. Como se eu fizesse um movimento mais vertical e a Flora um mais horizontal.

 

E.V.: Vocês diriam então que Gok tem tendência a figurar o abstrato e Flora de

abstrair o figurativo?

 

F.R.: É engraçado. Às vezes, quando a gente está conversando sobre um trabalho dela, por exemplo, e a Gokula fica batendo numa tecla, tipo: “tem que ter a mão, tenho que pintar a mão!” E eu digo, esquece isso! Tem um negócio aí que já sugere a mão!

 

E.V.: Tá vendo, “a flor e a mão” podia ser o nome da exposição. Ilustrado por esta árvore, feita com carimbo de mão e que parece ter mãozinhas nas extremidades. Mas tem que adivinhar o que é flor, o que é mão... E, daí, um dia, vocês vão estar velhas e ainda vão discutir se é mão ou se é flor!

 

 

TERRA DOS ESPANTALHOS

 

E.V.: Dá para perceber que a organização dos trabalhos se deu por meio de uma associação livre.

 

G.S.: É como um rizoma, uma coisa que vai se expandindo e tocando assuntos diferentes. E quando chega no conjunto final, a ideia de início já se transformou completamente.

 

F.R.: A gente avizinhou os trabalhos de várias maneiras. Às vezes é por uma semelhança formal, às vezes é por causa do assunto ou por uma sugestão de narrativa entre as imagens.

 

E.V.: Tudo ao mesmo tempo, certo?

 

F.R.: Sim, porque é o jeito que a gente trabalha.

 

G.S.: Uma coisa vai informando a outra...

 

E.V.: Esse jeito de trabalhar parece um código open source de alguma coisa... É como ver a cabeça funcionando. Como se vocês estivessem abrindo todo o universo de referências e as entrelinhas do trabalho. E como vocês chegaram ao título da exposição?

 

F.R.: No último dia da viagem, a gente fez um espantalho e uma série de fotografias que estão na exposição. Acho que a imagem do espantalho nos ajudou a entender que conjunto de trabalhos é este.

 

G.S.: É meio espantalho, né, juntar coisas para formar um corpo? Foi assim que os conjuntos se formaram. E o nome “Espantália” foi uma sugestão do Ricardo Sardenberg. É um achado porque remete a marginália, genitália... E pode ser também o nome da terra dos espantalhos.

 

E.V.: O tipo de unidade que vocês criaram parece mesmo um espantalho. Os materiais remetem ao universo rural... E acho que a maneira como vocês conseguiram fazer os grupos de trabalho deu muito certo. Vocês encontraram uma liga, uma química...

 

F.R.: Acho que essa liga, essa nossa conversa, começou pela busca de títulos para trabalhos, antes desta exposição. Eu tenho um “Dicionário Analógico”, um livro que agrupa os verbetes por conjunto de ideias afins. E a gente começou a fazer isso juntas, pensando em opções de títulos a partir do que esse dicionário sugeria.

 

G.S.: Acho que é mais fácil de entender alguma coisa quando você fala dela e pode contar com o olhar do outro. Esses encontros para pensar títulos passaram a ter um papel precioso no processo das duas.

 

E.V.: Pra mim, o título de uma exposição ou de uma obra é muito importante. Porque é o lugar em que você se coloca em relação à pessoa que está vendo a obra e dá um certo contorno para mais associações. Falem mais sobre a relação de vocês com os títulos...

 

G.S.: Eu tenho uma ideia de que meu trabalho funciona como uma ferramenta de autodescoberta, e somente depois de prontos que posso me pôr a decifrá-los. A hora de dar títulos é também a hora de balancear o quanto eu entrego dessa experiência individual e o quanto eu deixo aberto para que o outro também se reconheça.

 

F.R.: Quando eu comecei a trabalhar, eu não conseguia dar título pra nada. Eu achava que ia diminuir o trabalho. Mas isso era uma justificativa. No fundo, eu tinha dificuldade de reconhecer o assunto do trabalho. Hoje em dia, acho super importante. Faz parte de um processo de entendimento.

 

 

UMA HORTA MUITO FÉRTIL

 

E.V.: Pra mim, é como se eu estivesse andando por uma horta muito fértil. O universo da exposição tem de tudo: Poesia, matemática, vidro, meditação... A foto é um pouco virtual. Ela dá uma dimensão a mais, que não é mais só o lugar da tinta. Como foi que as fotos entraram nesse conjunto?

 

G.S.: A maioria das fotos é de imagens que eu fiz e sempre estiveram rondando meu trabalho. A série de fotografias Polaroid, as verdes, são resultado de um acidente. Foi a primeira coisa que eu fiz e gostei, que considero um trabalho.

 

E.V.: Da sua vida?

 

G.S.: É! E foi um acidente total. O cartucho da câmera estava com defeito. Precisei esfregar a bolsinha de emulsão no papel fotográfico, pra tentar salvar. O mais provável é que as fotos ficassem todas queimadas. Mas daí ficaram assim, parecendo fogo, uma paisagem. Lembram imagens que são recorrentes no meu trabalho.

 

E.V.: Em sua maior parte, os trabalhos são pequenos. Mas tem alguns grandes. Como vocês trabalharam esse equilíbrio?

 

F.R.: Teve um momento em que a gente se viu no meio de todas essas coisinhas, e achou que faltava variação de escala. Daí, decidimos incluir alguns trabalhos maiores, pra dar uma dinamizada.

 

E.V.: E como vocês vão preparar o espaço pra receber os trabalhos? Eu tenho a impressão de que as cores que vocês têm aqui nas paredes do ateliê foram importantes pra montar esses grupos.

 

F.R.: Certamente essas cores influenciaram muito a gente. Tem amarelo, tem um rosa mais forte, tem um rosinha... Eu acho que a gente foi escolhendo os trabalhos e colocando nas paredes em função das cores.

 

G.S.: Suspeito também que essas cores recebem melhor os agrupamentos. Vamos replicá-las no espaço expositivo.

 

 

 

Edição: Antonio Farinaci

*****

ESPANTÁLIA

During 10 days in May 2023, Flora Rebollo and Gokula Stoffel lived an artistic immersion experience in the rural area of the city of Bocaina de Minas (MG). During this period, the two engaged in a deep dialogue that resulted in the exhibition “ESPANTÁLIA” - originating from an embryo that existed since 2019 when the artists became studio neighbors. In the final stages of preparing the exhibition for Lanterna Mágica, Flora and Gokula received Erika Verzutti for a conversation about the outcome of this journey.

 

 

OBSERVATION AND ABSORPTION

 

Erika Verzutti: How was the experience of working in Bocaina, surrounded by nature?

 

Flora Rebollo: When we arrived there, we could only look at the landscapes, the plants, the sunset... It’s a beautiful place, and it was very difficult not to be captivated by it. Most of the work I did there was based on observation. But when I returned to São Paulo, I changed almost everything. When the works done there arrived at the studio, it was a relief because it seemed like they had found their companions.

 

Gokula Stoffel: I, on the other hand, struggled with the idea of representing something that was right in front of me. Because I don’t work that way, starting from reality. At the same time, I really wanted to do it because everything there was beautiful. I think the landscape I did and liked the most was when I turned my back to the view. I decided to create the landscape without looking at the landscape.

 

F.R.: We spent 10 days there, observing things. Then, we returned to the city and created more works based on the memories of what we absorbed during that time observing our surroundings.

 

G.S.: In the works we did in Bocaina, there is a lot of “external” landscape. In the ones we produced in São Paulo, the landscape is more “internal.”

 

E.V.: I’m not sure I could sustain an artistic activity in direct contact with nature for a long time. I think I would work a bit, then retreat a bit. I understand what you’re saying.

 

F.R.: And it’s a place of extremes. There was a bodily aspect to it, like plunging into the icy waterfall, then going to the sun to warm up, coming out into the brightness, then entering the darkness of the house...

 

G.S.: By five thirty in the evening, there was no light to work outside the house, for example. It was time to come in, prepare food, talk a little about the works... So, we quickly caught the rhythm of the day.

 

F.R.: There was a day when I woke up at six in the morning, opened the window, and watched the sunrise from my bed. I spent a lot of time looking at the sun through the mist. Until I fell asleep again. And I dreamt that I had gone blind with that light. I wandered through the house saying, “Gok, I can’t see anything!”

 

G.S.: On that day, I also woke up early, and I was in the kitchen, sitting, watching the dawn through the window. I closed my eyes and started to see negatives: green turned red, blue turned orange, the colors flickered, and there was a dark spot in the middle of the sky... Flora told me about the dream where she was blind, and there I was, seeing a black sun.

 

 

THE FLOWER AND THE HAND

 

E.V.: You have reached a blend of work that has worked out really well, which is not always easy to achieve. For me, with each visit, it became increasingly difficult to distinguish what belongs to each of you.

 

G.S.: There are some works that clearly belong to either one of us. But then there’s, for example, a little painting, a somewhat scribbled sunset, which Flora did, but I look at it and think I could have done it or that I have already done something similar. It feels very familiar.

 

F.R.: Our works have similarities, but they end up in different places. Both of us start without a plan and work until we find something. In Gokula’s case, it seems that when she finds a figure, that becomes her focus. In my case, the focus is on transforming and abstracting.

 

G.S.: Yes, at that point in the work, I start to provide more definition so that people can also see what I see. It’s as if I make a more vertical movement while Flora makes a more horizontal one.

 

E.V.: So, would you say that Gok tends to depict the abstract and Flora tends to abstract the figurative?

 

F.R.: It’s funny. Sometimes, when we’re discussing one of her works, for example, and Gokula keeps emphasizing something, like, “it needs to have a hand, I have to paint the hand!” And I tell her, forget about it! There’s something there that already suggests the hand!

 

E.V.: You see, “the flower and the hand” could be the name of the exhibition. Illustrated by this tree made with hand stamps that seems to have little hands at the ends. But one has to guess what is a flower and what is a hand... And then, one day, you’ll both be old and still argue whether it’s a hand or a flower!

 

 

LAND OF SCARECROWS 

 

E.V.: It’s noticeable that the organization of the works was done through free association.

G.S.: It’s like a rhizome, something that expands and touches on different topics. And when it comes to the final collection, the initial idea has completely transformed.

 

F.R.: We approached the works in various ways. Sometimes it’s based on a formal similarity, other times it’s because of the subject or a suggestion of narrative between the images.

 

E.V.: All at the same time, right?

 

F.R.: Yes, because that’s how we work.

 

G.S.: One thing informs the other...

 

E.V.: This way of working seems like an open-source code for something... It’s like seeing your minds at work. As if you were opening up the entire universe of references and the subtleties of the work. And how did you come up with the exhibition’s title?

 

F.R.: On the last day of the trip, we made a scarecrow and took a series of photographs

that are part of the exhibition. I think the image of the scarecrow helped us understand what this collection of works is about.

 

G.S.: It’s kind of like a scarecrow, isn’t it? Gathering things to form a body? That’s how the collections were formed. And the name “Espantália” was suggested by Ricardo Sardenberg. It’s a great find because it alludes to marginalia, genitalia... And it can also be the name of the land of scarecrows.

 

E.V.: The kind of unity you created does resemble a scarecrow. The materials evoke a rural universe... And I think the way you managed to group the works has worked out really well. You found a connection, a chemistry...

 

F.R.: I think this connection, our conversation, started with the search for titles for our works, before this exhibition. I have an “Analogical Dictionary,” a book that groups entries by related ideas. And we started doing that together, thinking of title options based on what that dictionary suggested.

 

G.S.: I think it’s easier to understand something when you talk about it and can rely on the other person’s perspective. These meetings to think of titles have become precious in both of our processes.

 

E.V.: For me, the title of an exhibition or artwork is very important. Because it’s the place where you position yourself in relation to the person viewing the artwork and provides a certain framework for more associations. Tell me more about your relationship with titles...

 

G.S.: I have this idea that my work functions as a tool for self-discovery, and only after they’re finished can I start deciphering them. The moment of giving titles is also the moment of balancing how much of my individual experience I reveal and how much I leave open for others to recognize themselves.

 

F.R.: When I first started working, I couldn’t give titles to anything. I thought it would diminish the work. But that was just an excuse. Deep down, I had difficulty recognizing the subject of the work. Nowadays, I find it super important. It’s part of a process of understanding.

 

 

A VERY FERTILE GARDEN

 

E.V.: To me, it’s as if I’m walking through a very fertile garden. The exhibition’s universe has everything: poetry, mathematics, glass, meditation... The photograph adds a virtual dimension. It provides an extra layer beyond the realm of paint. How did the photographs become part of this collection?

 

G.S.: Most of the photos are images I took that have always been circling around my work. The series of Polaroid photographs, the green ones, are the result of an accident. It was the first thing I did and liked, something I consider as a work.

 

E.V.: From your life?

 

G.S.: Yes! And it was a total accident. The camera cartridge was defective. I had to rub the emulsion packet on the photographic paper to try to salvage it. Most likely, the photos would have turned out all burned. But instead, they ended up looking like fire, a landscape. They remind me of recurring images in my work.

 

E.V.: Most of the works are small in size, but there are some large ones. How did you balance that?

 

F.R.: There was a moment when we found ourselves amidst all these little things and felt that there was a lack of scale variation. So, we decided to include some larger works to add dynamism.

 

E.V.: And how are you going to prepare the space to showcase the works? I have the impression that the colors you have here on the studio walls were important in organizing these groups.

 

F.R.: Certainly, these colors influenced us a lot. There’s yellow, a stronger pink, a light pink... I think we were selecting the works and placing them on the walls based on the colors.

 

G.S.: I also suspect that these colors will better receive the groupings. We’ll replicate them in the exhibition space.

 

 

Edition: Antonio Farinaci

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