ROCAMBOLE EM PORTUGAL É TORTA ENROLADA
Fernanda Brenner
Os artistas Flora Rebollo, Thiago Barbalho e Yuli Yamagata estão alémmar, viajaram com seus trabalhos para a Kunsthalle Lissabon, onde abrem as malas fechadas em seu estúdio compartilhado no edifício Copan, em São Paulo. Além das malas e trabalhos mais ou menos prontos, os três artistas levaram consigo o Pivô, sua equipe e seu jeito de fazer as coisas.
A amizade entre os artistas informa esse projeto, e a amizade entre as duas instituições levou à realização da segunda exposição do grupo, carregada tanto de afeto quanto de dúvida. O que vai acontecer quando abrirmos as malas nesse novo ambiente? Será que o rocambole viaja bem? O que mudou da primeira para a segunda versão da exposição?
Ao me perguntar isso, lembro de uma história famosa do galerista Marcantônio Vilaça (morto em 2000, ele foi um agente emblemático da cena de arte paulista e um dos grandes responsáveis pela expansão da circulação internacional da arte contemporânea brasileira) que levava sempre um delicioso “bolo de rolo”, feito por sua mãe no Recife, nas suas incansáveis viagens internacionais. O doce caseiro era como uma espécie de cartão de visitas, que seduzia os interlocutores do galerista pelo paladar e funcionava como ponto de partida para conversas que, consequentemente, abririam portas para a arte brasileira.
A Kunsthalle Lissabon é uma instituição que advogada pela “hospitalidade radical”. Além da condução de seu excelente programa de exposições, João Mourão e Luis Silva são conhecidos por proporcionar a seus convidados passeios inesquecíveis pelos bares e restaurantes de Lisboa. Mais ou menos 32 horas depois de me despedir de Yuli Yamagata e Thiago Barbalho no Pivô, recebo por WhatsApp uma imagem de um prato de comida ao lado de um emoji sorridente. Os curadores da KL, assim como Vilaça, entendem o valor do encontro e do compartilhamento de experiências como combustível fundamental da produção artística e de sua difusão. E o projeto Rocambole foi concebido a partir dessa premissa.
Logo, quando o Pivô foi convidado a ocupar, temporariamente, a Kunsthalle Lissabon, pensei, no mesmo instante, em propor a itinerância desse projeto que, a meu ver, traduz muito bem a confluência entre as metodologias de trabalho e o pensamento curatorial e institucional dos dois espaços. Os três artistas de Rocambole se conheceram no contexto do programa de residências do Pivô, o Pivô Pesquisa, em 2017, quando perceberam, pelo convívio, uma série de afinidades formais e conceituais entre seus trabalhos, o que os levaria a criar um projeto de exposição conjunto, acompanhado pela equipe de curadoria do Pivô e realizado em seu espaço expositivo, em 2018. Ao todo, são mais de dois anos de trabalho em que muita coisa aconteceu, tanto nas práticas individuais de cada um, quanto no Pivô e no Brasil. No entanto, a receita segue sendo, praticamente, a mes-ma: trabalhos novos de cada um deles, unidos pela predileção dos três pelas misturas irreverentes de cores e texturas, por anamorfoses e formas sinuosas e, sobretudo, por um fazer obstinado. A interação das obras é por proximidade, em vários casos os encontros no espaço são harmônicos e, em outros, mais estridentes. Na primeira versão, os artistas conheciam bem o espaço e fizeram vários dos trabalhos no próprio ambiente da exposição. Na segunda, os trabalhos foram pensados à distância para ocupar uma sala desconhecida, em outro país. Durante alguns meses, uma maquete física da KL ocupou o estúdio dos artistas no Pivô. Ali, os artistas ensaiaram a nova ocupação, em que lidariam com ângulos retos em vez de curvas modernistas.
No segundo volume da publicação Performing the Institution(al), João Mourão e Luis Silva citam uma frase da personagem Tess McGill, do filme Working Girl, de Mike Nichols (1988) : “Se queres ser levada a sério, tens de ter cabelo a sério” ao se referirem ao “embuste institucional” que se propuseram a levar adiante nos últimos dez anos. Mais ou menos à revelia – e, totalmente, por conta do envolvimento vertical de seus criadores e colaboradores –, a KL veio a ser uma relevante instituição no mundo real. Yuli Yamagata uma vez me disse angustiada : “As pessoas acham que eu estou fazendo piada, mas eu estou falando muito sério”, enquanto enrolava uma enorme minhoca de tecido calçada com um tênis para cachorros.
O que têm em comum a ética de trabalho da Kunsthalle Lissabon, a exposição Rocambole e o bolo de rolo de Marcantônio Vilaça? A valorização incondicional e a consciência política do gesto de “puxar assunto”, além da crença de que arte é assunto muito sério (o que não significa sisudez). O galerista pernambucano cont, junto com um cartão impresso com uma pintura da então desconhecida Beatriz Milhazes (parece que ela amou o rocambole e odiou a pintura). Entre discussões complexas e generosas porções de amêijoas, a instituição portuguesa realizou projetos singulares com vários dos mais interessantes jovens artistas contemporâneos e para nós, do Pivô, é uma honra habitar provisoriamente ava que, nos anos 1990, ofereceu a iguaria à Barbara Gladstone em um avião esse espaço – e essa história –, levando pela primeira vez a Portugal três artistas brasileiros em quem acreditamos muito e com um projeto tão especial, que começou a partir de conversas informais nos ateliês e espaços comuns do Pivô.
Sempre me perguntam se o Pivô existiria fora do Copan e eu hesito em responder. Agradeço imensamente à Kunsthalle Lissabon por nos oferecer a oportunidade de testar essa possibilidade.
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ROCAMBOLE IN PORTUGAL IS LITERALLY ROLL CAKE
Fernanda Brenner
Artists Flora Rebollo, Thiago Barbalho and Yuli Yamagata took their artworks overseas. They packed their suitcases in their shared studio in the Copan building, in São Paulo, and opened them at the Kunsthalle Lissabon, in Lisbon. As well as their luggage and more or less completed artworks, the three artists carried with them Pivô, its team and its way of making things.
The original project was informed by the artist’s friendship. And the friendship between the two institutions led to the group’s second exhibition, which carries as much affect as it carries doubt. ‘What is going to happen when we introduce Rocambole to this new environ-ment? Will it travel well? What has changed from the first to the second edition of this exhibition?’
When pondering these questions I remembered a well-known anecdote by gallery owner Marcantônio Vilaça, who, prior to his death in 2000, was an emblematic agent in the São Paulo art scene and played a key role in expanding the international circulation of Brazilian contemporary art. Vilaça always took a delicious 'bolo de rolo' made by his mother in Recife on his regular trips abroad. The homemade cake was a sort of calling card that seduced his interlocutors and served as a conversation starter, ultimately opening doors for Brazilian art.
Kunsthalle Lissabon is an institution committed to ‘radical hospitality’. In addition to its exceptional programme of exhibitions, João Mourão and Luis Silva are known for treating their guests with unforgettable tours of Lisbon’s bars and restaurants. (Only 32 hours after I said goodbye to Yamagata and Barbalho at Pivô, I received an image on WhatsApp showing a plate of food and a smiling emoji). In a simi-lar fashion to Vilaça, KL curators understand the value of meeting and sharing experiences as critical fuel for art production and dissemination. And Rocambole was conceived based on the same premise.
When Pivô was invited to temporarily occupy Kunsthalle Lissabon, I immediately thought about this project, which, in my view, manages to very effectively translate the confluence between Pivô and KL’s work methodologies and institutional and curatorial approaches. The three artists behind Rocambole met in 2017, during the art residency programme Pivô Research, where their interaction unveiled a series of formal and conceptual links between their practices. This instigated them to propose an exhibition in collaboration with Pivô’s curatorial team, which was exhibited at Pivô in 2018. It was more than two years of work, a time during which many things happened in the artists’ individual practices, as well as at Pivô and in Brazil. However, the recipe remains practically the same: new artworks created by the artists who are connected by their predilection for irreverent combinations of colour and texture, anamorphosis and sinuous forms and, above all, their obstinacy to make. The interaction between the works is conjured by proximity. In many cases, their encounters in space are harmonious; in others, they are more blaring. In the first version, the artists were intimately familiar with the exhibition space and many of the artworks were actually made inside it. In the second edition, the works were produced remotely to occupy an unknown room in a different country. For months, a physical model of KL could be seen in the artists’ studio at Pivô. It was used to rehearse the new occupation, which would have to deal with straight angles rather than Copan’s modernist curves.
In the second volume of Performing the Institution(al), João Mourão and Luis Silva quote a line by Tess McGill, a character in Mike Nichols’ film Working Girl (1988): ‘You want to be taken seriously, you need serious hair’. This was in reference to the ‘institutional hoax’ the authors performed in the last ten years. More or less by default – and absolutely due to the vertical engagement of its creators and collaborators – KL became a major institution in the real world. Yamagata once told me anxiously: ‘People think I am having a laugh but I am being very serious’, whilst she twisted a gigantic textile worm wearing a pair of trainers for dogs.
What do the work ethics of Kunsthalle Lissabon, the Rocambole exhibition and Marcantônio Vilaça’s bolo de rolo have in common? The unconditional appreciation and political awareness of the act of starting a conversation, as well as the belief that art is a very serious matter (without being stiff ). The story goes that in the 1990s Vilaça offered the Brazilian delicacy to Barbara Gladstone on a plane, along with a card printed with a painting by the then unknown artist Beatriz Milhazes (it seems that she loved the cake but hated the painting). In between profound discussions and generous portions of shellfish, the Portuguese institution has carried out unique projects with some of the most interesting young contemporary artists of our time. For us at Pivô, it is an honour to temporarily occupy this space and history, taking to Portugal – for the first time – three Brazilian artists in whom we truly believe and who have a very special project that emerged from informal conversations in Pivô’s studios and common areas.
People have always asked me if Pivô would exist outside Copan and I have always hesitated. I am extremely grateful to Kunsthalle Lissabon for offering us the opportunity to test this possibility.