OBJETOS ANSIOSOS
Uma das principais características da produção de Flora Rebollo é seu ânimo expansivo. As atividades da artista começam, em geral, pela escala da mão, no desenho, no preenchimento de planos bidimensionais, e se ampliam fisicamente para as dimensões do corpo humano e da arquitetura, à medida que incorporam superfícies, objetos e operações diferentes a seus processos, na montagem de um políptico, uma estrutura, uma peça tridimensional. Isso ocorre, de maneiras variadas, desde o início dessa trajetória, há quase 10 anos.
Mesmo trabalhos realizados por Rebollo em suporte único e formato pequeno costumam sugerir o ínfimo e o descomunal, o próximo e o remoto (no tempo e no espaço), a uma só vez. Aquilo que se parece com imagens do cosmos, dos astros, de uma criatura intergaláctica, provavelmente se parece também, ou convive lado a lado, com visões microscópicas, de fenômenos e seres complexos, de divisões celulares, ou microrganismos monstrengos e divertidos. Já o gesto inaugural de imprimir a palma da mão é repetido aqui com a exposição de um polegar fraturado, com a cor, a textura, o brilho e o cheiro do batom, sempre feito sobre superfícies saturadas de matéria e labor. Ô, Cride, fala pra mãe: originalidade e pureza são mitos.
A produção da artista agencia e aglomera signos e fragmentos – com grafite, bastão e pastel a óleo, spray, tinta acrílica, marcador, com técnicas do desenho “artístico", científico e daquele feito com a ponta da chave no tronco da árvore; com a iconografia de sistemas cosmológicos, o poder evocativo dos símbolos, alegorias místicas; com Egito antigo, Paul Klee, Antonio Dias e Nancy Spero na cabeça; com uma cultura pop meio zen-psicodélico-rural-punk-new-wave –, tudo isso e mais distribuídos em unidades, muitas vezes, dispersivas, aparentemente casuais, sem hierarquia, e intensas.
Trata-se de uma abrangência que só um pensamento curioso e experimental é capaz de estender. Uma amplidão que, por outro lado, não se deixa confundir com ecletismos, porque não se resume a compor a partir de formas prévias. Flora Rebollo, em vez disso, põe-se à prova constantemente, na lida com o mais particular e o mais público, com mitologias secretas e os clichês da cultura. Na produção recente da artista notam-se, por exemplo, movimentos novos de abertura e dilatação, quando ela passa a transferir marcas de seu corpo inteiro para as superfícies do trabalho – de maneira resoluta, sobre espaços incertos, formados por manchas e halos de luz, em meio a restos e frações de coisas esparsas.
É verdade que há pelo menos três anos Rebollo besunta principalmente mãos, braços e pés, para imprimi-los em papeis ou telas. Mas, em trabalhos realizados a partir do ano passado, a artista se lança de cabeça, e da cabeça aos pés, sobre a tela. E se as superfícies do trabalho sempre foram, para ela, uma arena na qual atuar – primeiro, por meio do desenho e da pintura, entre minúcias e rasuras, entre o manuseio zeloso e o ataque intempestivo –, agora o são também por meio de ações que aproximam o trabalho da performance e da dança.
Tal aproximação não se dá apenas pelas etapas que o processo de carimbar a própria silhueta requer – ao implicar a maquiagem, o posicionamento, a pressão e uma sequência de deslocamentos do corpo sobre o suporte, o que, por si só, tem muito a ver com a performance e a dança. Mas também porque, nos resultados, o que se vê são imagens desse corpo em plena ação, ainda que decomposto, como se fora desmontado.
No trabalho que dá título à exposição, Ansiedade cósmica (2023), carimbos de partes do corpo de Flora Rebollo são aplicados em justaposição e em curva, a ocupar a área total do trabalho com duas espirais, sobre um fundo aéreo e, ao mesmo tempo, áspero, no qual gravitam pequenos elementos. Insinuantes como são, essas espirais sugerem tanto um cosmos duplo, quanto a alternância de movimentos corporais de contração e alongamento, para dentro e para fora de seus núcleos.
Em consequência, parecem convergir ali o céu e a Terra, o espaço sideral e elementos da vida mundana, remissões a partículas subatômicas e os componentes de uma estrutura física feminina, viva, ágil, com pés, bunda, mão, antebraço, peitos, coxa, em rotações truncadas. Ou estariam, naquele topo de mundo, corpos vários, em dança e comunhão? Talvez também essas formas espiraladas lembrem dois botões de rosa vistos de cima, ou a representação do par de olhos de alguém sob hipnose, ou em estado de consciência alterado. O trabalho é, afinal, desenvolto, livre, constitui-se de humor e se abre para ideações desse tipo.
O corpo feminino reaparece em outra pintura presente nesta exposição, desta vez em figuração de êxtase. Borbulhas de amor (2024) é um díptico e um compósito, compõe-se de duas telas e uma porção de aglomerados. Nessa pintura há um erotismo difuso, que se manifesta na tela superior na imagem de um par de pernas abertas, brancas, meio azuladas, em contraste sutil com um fundo rosa, claro, liso e homogêneo. Entre as pernas, na área onde estaria a genitália, dispõe-se costurado um pedaço de tecido em forma de peixe. (O título do trabalho logo implanta na cabeça a continuação do refrão: “um peixe, para em seu límpido aquário mergulhar...”).
O erotismo se manifesta também na parte inferior do díptico, mas de maneira diferente: no enleio decorativo e, ao que tudo indica, prazeroso, durante o qual se desdobrou um trabalho obsessivo de desenhar, pintar, raspar e preencher, de novo e de novo, a área total da tela. Até gerar um mosaico de formas, em sua maioria, ovoides, com aspecto mineral, e com cores, consistências e temperaturas variadas, cintilantes, opacas e transparentes, mais e menos sólidas, quentes e frias, algumas liquefeitas, encaixadas ou justapostas, realizadas com um grafismo caprichoso.
Outros elementos são acoplados à tela superior: um emaranhado de linha à esquerda; um pouco acima, um pedaço de tela que transfigura um meteoro, ou uma estrela cadente, cruzando os céus; à direita, outro pedaço de tela, mal costurado ao suporte, que lembra a forma de uma banana; enquanto, logo acima, prende-se uma tira de linho com uma pintura esquemática de sol; e na lateral, à direita, pende um ajuntado de bitucas de cigarro resinadas, que se parece com um amuleto. O conjunto arma, assim, uma arrebentação súbita, a espalhar pela obra os múltiplos sinais que dimensionam e fazem circular o deleite e a satisfação daqueles exercícios todos.
A cada trabalho, esta exposição aponta para – e confirma – um novo momento de desembaraço na produção de Flora Rebollo. Para continuar com os exemplos, há peças que se apresentam como estruturas, na aparência, provisórias e disponíveis, com seus elementos reunidos, porém soltos, como se fossem franjas, sugerindo a possibilidade de comutações, como em Pi (2024) – a rigor, uma pintura de natureza-morta, em que as frutas também se oferecem por cima do cesto ou do prato.
A mostra marca um momento em que os trabalhos da artista passam a exibir-se também pelo avesso, a partir de sua face mais misteriosa, para a qual não houve cálculo nem controle, como faz Pilha (2024). E, assim, o trabalho parece seguir seu andamento à vontade, inclusive ao se espichar como faixa, uma tira de pintura (Longamira, 2024), nas duas faces, frente e no verso, desde o chão, para o alto de um totem, onde apresenta as estampas do rosto da artista, deste e daquele lado do objeto, para o qual cai, até estirar-se de novo sobre o solo, e se colocando, nesse percurso, acima dos olhos e diante dos pés.
O título da exposição talvez soe, de início, como uma blague em relação ao estado de espírito em que estamos metidos – pelas incertezas, pelos sentimentos de vulnerabilidade e pela percepção de que, mesmo nas instâncias mais próximas de cada um, as coisas escapam ao controle. Mas esse nome vem de um livro do escritor e jornalista húngaro Arthur Koestler, Os sonâmbulos (1959), que tenta explicar, entre outras coisas, como a ciência e a religião, a razão e a fé, dividiram a missão de apaziguar a “ansiedade cósmica” da humanidade em relação aos fascínios desconhecidos do universo – o sonambulismo do título metaforiza, então, os caminhos erráticos da pesquisa científica, tomados em parte por intuição, no escuro, às cegas.
Nesse sentido, talvez fosse proveitoso cotejar de maneira ligeira, ainda que sem mediações, a ansiedade descrita por Koestler com a noção de “objeto ansioso” do crítico de arte nova-iorquino Harold Rosenberg. Ao refletir sobre os acontecimentos no campo das artes visuais nos Estados Unidos, entre os anos 1950 e o começo dos 1960, com o chamado “neodadá” e a arte pop, Rosenberg constata que não haveria mais, àquela altura (1965), critério consensual sobre o que é uma obra de arte. E um dos enunciados estimulantes de seu texto diz que: “a ansiedade da arte incorpora a liberdade da arte para redefinir-se à sua maneira”. Pois parece que os trabalhos de Flora Rebollo têm algo dessa angústia, dessa ansiedade, própria às coisas sem definição fixa. Uma ansiedade que se encontra em nível alto, em extensão generalizada e que, talvez por isso, mereça o adjetivo de “cósmica”.
José Augusto Ribeiro
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ANXIOUS OBJECTS
One of the main features of Flora Rebollo’s work is her expansive mood. Her activities often start by the scale of the hand in the drawing, in the filling of the two-dimensional planes, and they expand physically to the dimensions of the human body and the architecture, as they aggregate different surfaces, objects and operations to her processes, in the assembly of a polyptych, a structure, or a three-dimensional piece. That has been taking place, in various ways, since she started almost 10 years ago.
Even works that Rebollo made in a single support and in a small format often suggest both the tiny and the enormous, the close and the far (both in time and space), at the same time. What looks like images of the cosmos, the stars, an intergalactic creature, probably also looks like, or lives side by side with microscopic views, of complex phenomena and beings, cellular divisions, or monstrous and funny micro-organisms. In turn, the inaugural gesture of printing the palm of the hand is repeated here with the display of a broken thumb, with the color, the texture, the brightness and the scent of the lipstick, always done on surfaces saturated of matter and work. Ô, Cride, fala pra mãe[1]: originality and purity are myths.
Flora’s production combines and clusters signs and fragments - with graphite, stick and oil pastel, spray, acrylic paint, marker, with "artistic", scientific drawing techniques and those made with the tip of a key on a tree trunk; with the iconography of cosmological systems, the evocative power of symbols, mystical allegories; with ancient Egypt, Paul Klee, Antonio Dias and Nancy Spero in mind; with a kind of Zen-psychedelic-rural-punk-new-wave pop culture - all this and more distributed in units that are often dispersed, apparently casual, without hierarchy, and intense.
This is a scope that only curious and experimental thinking can extend. A breadth that, on the other hand, does not allow itself to be confused with eclecticism, because it is not just a matter of composing based on previous forms. Instead, Flora Rebollo constantly puts herself to the test, dealing with the most private and the most public, with secret mythologies and the clichés of culture. In her recent work, for example, we can see new movements of openness and dilation, when she begins to transfer marks from her entire body to the surfaces of her work - in a resolute manner, on uncertain spaces, formed by spots and halos of light, amid scraps and fractions of sparse things.
It's true that for at least the last three years Rebollo has been smearing her hands, arms and feet to print them on paper or canvas. However, in works created since last year, the artist has thrown herself headfirst, from head to toe, onto the canvas. And if the surfaces of the work have always been, for her, an arena in which to act - first, through drawing and painting, between details and erasures, between zealous handling and untimely attack - now they are also through actions that bring the work closer to performance and dance.
Such approximation does not take place only through the stages that stamping her own silhouette requires – by implying the make-up, the positioning, the pressure and a sequence of movements of the body on the support, which, alone, is very similar to performance and dance. But also because, in the results, what one sees are images of this body in full action, even though broken down, as if it was disassembled.
In the work that gives the exhibition its title, Ansiedade Cósmica (Cosmic Anxiety) (2023), stamps from parts of Flora Rebollo’s body are applied in juxtaposition and in curve, occupying the total of the work with two spirals, on an aerial and rough background, where small elements gravitate. Insinuating as they are, these spirals suggest both a double cosmos and alternating body movements of contraction and stretching, in and out of their cores.
Therefore, Heaven and Earth seem to converge there, along with outer space and elements of ordinary life, referring to subatomic particles and the components of a female physical structure, alive, agile, with feet, buttocks, hands, forearms, breasts, thighs, in truncated rotations. Or were they, at the top of the world, several bodies in dance and communion? Perhaps these spiral shapes are also reminiscent of two rosebuds seen from above, or the representation of the pair of eyes of someone under hypnosis, or in an altered state of consciousness. The work is, after all, free, humorous and open to ideas of this kind.
The female body reappears in another painting in this exhibition, this time in a depiction of ecstasy. Borbulhas de Amor (Bubbles of Love) (2024) is a diptych and a composite, made up of two canvases and a bunch of clusters. In this painting there is a diffuse eroticism, which manifests itself on the upper canvas in the image of a pair of open, white, half-blue legs, in subtle contrast with a light, smooth and homogeneous pink background. Between the legs, in the area where the genitalia would be, a piece of fabric in the shape of a fish is sewn on (the title of the work immediately sets the chorus in your head: "a fish, to dive into its clear aquarium...").
Eroticism is also present in the lower part of the diptych, but in a different way: in the decorative and, it seems, pleasurable entanglement, during which an obsessive work of drawing, painting, scraping and filling the entire area of the canvas again and again unfolded. Until she created a mosaic of shapes, mostly ovoid, with a mineral aspect, and with varying colors, consistencies and temperatures, shimmering, opaque and transparent, more or less solid, hot and cold, some liquefied, fitted or juxtaposed, made with a whimsical graphics.
Other elements are attached to the upper canvas: a tangle of thread on the left side; a little higher up, a piece of canvas that transfigures a meteor or a shooting star crossing the sky; on the right, another piece of canvas, poorly sewn to the support, which resembles the shape of a banana; while, just above, a strip of linen with a schematic painting of the sun is attached; and on the side, on the right, hangs a collection of resin cigarette butts, which looks like an amulet. The ensemble thus sets off a sudden rapture, spreading throughout the work the multiple signs that dimension and circulate the delight and satisfaction of all those exercises.
With each work, this exhibition points to - and confirms - a new moment of resourcefulness in Flora Rebollo's production. To continue with the examples, there are pieces that present themselves as structures, in appearance, provisional and available, with their elements assembled but loose, as if they were bangs, suggesting the possibility of commutations, as in Pi (2024) - strictly speaking, a still life painting, in which the fruit is also offered on top of the basket or plate.
The exhibition marks a moment when the artist's works are also shown inside out, from their most mysterious side, for which there was no calculation or control, as in Pilha (Pile) (2024). And so the work seems to proceed at will, even as it spreads out like a strip of paint (Longamira, 2024), on both sides, front and back, from the ground, to the top of a totem pole, where it shows prints of the artist's face, on this and that side of the object, to which it falls, until it stretches out again on the ground, placing itself, along the way, above the eyes and in front of the feet.
The title of the exhibition may sound at first like a joke about the state of mind we're in - the uncertainties, the feelings of vulnerability and the realization that, even in the instances closest to us, things are out of our control. But the name comes from a book by Hungarian writer and journalist Arthur Koestler, Os Sonâmbulos (The Sleepwalkers) (1959), which tries to explain, among other things, how science and religion, reason and faith, shared the mission of appeasing humanity's "cosmic anxiety" about the unknown fascinations of the universe - the sleepwalking of the title metaphorizes, then, the erratic paths of scientific research, taken partly by intuition, in the dark, blindly.
In this sense, it might be useful to briefly compare the anxiety described by Koestler with New York art critic Harold Rosenberg's notion of the "anxious object", even though without any mediation. Reflecting on the events in the field of visual arts in the United States between the 1950s and early 1960s, with the so-called "neo-Dada" and pop art, Rosenberg notes that at that time (1965) there was no longer a consensus on what a work of art is. And one of the stimulating statements in his text is that: "the anxiety of art embodies the freedom of art to redefine itself in its own way". It seems that Flora Rebollo's works have something of this anguish, this anxiety, typical of things without a fixed definition. An anxiety that is at a high level, widespread and which, perhaps for this reason, deserves the adjective "cosmic".
José Augusto Ribeiro
[1] Expression that refers to an old humor program in Brazilian TV, whose character was called Euclides, or Cride.